Serial Killers Francisco das Chagas Rodrigues de Brito
A cena chocante
surpreendia até os policiais mais experientes: corpos de meninos sem roupa,
encontrados em estado avançado de decomposição. As vítimas tinham sinais de
tortura, algumas com dedos ou mamilos decepados. E todas carregavam uma marca
assustadora: os órgãos genitais removidos. Emasculados, em linguagem técnica.
Os meninos emasculados do Maranhão.
Durante
doze anos, garotos de 8 a 15 anos encontraram esse trágico fim em diversos
pontos da ilha de São Luís do Maranhão. Crianças pobres, que viviam em áreas de
periferia e desapareciam sem deixar vestígios. Até os corpos - ou ossadas -
serem encontrados, geralmente em áreas isoladas de mata.
Os
crimes tinham uma assinatura: a emasculação. E estavam contidos em uma área bem
específica – a ilha de São Luís. Duas características que, desde o século 19, a
crônica policial aponta como fortes indícios da ação de um matador em série, um serial
killer.
O
primeiro caso da série de assassinatos foi o de Jodelvanes de Macedo Escócio,
em setembro de 1991. O menino de 10 anos de idade saiu de casa na cidade de
Paço do Lumiar, na região metropolitana de São Luís, para vender sucos em um
campo de futebol. Nunca mais foi visto.
Já
o último caso de que se tem registro é o de Jonnathan Silva Viera, de 15 anos,
em dezembro de 2003. Antes de sumir, o garoto contou para a mãe que iria pegar
juçara, fruta parecida com açaí, na mata a convite de um homem. A ossada de
Jonnathan foi achada 40 dias depois.
Sebastião
Uchoa, delegado do caso, diz que quando assumiu as investigações ninguém fazia
ideia de que o autor das mortes poderia ser um serial killer.
A cobertura
midiática local rendia alguma visibilidade aos desaparecimentos e assassinatos,
mas as mortes caíam logo no esquecimento. E sem solução.
Somente
10 anos após o primeiro assassinato e uma busca sem fim dos familiares das
vítimas, finalmente alguém ligou os pontos. E aí a história dos meninos
emasculados do Maranhão deixou de ser exclusiva das páginas policiais. Se
tornou uma espinhosa questão política, com repercussões dentro e fora do
Brasil.
Foi
em 2001 que duas organizações não governamentais entenderam que as mortes e
emasculações em São Luís se tratavam de uma grave violação dos direitos humanos
de crianças e adolescentes. Violações que persistiam por causa da ineficiência
e omissão de autoridades locais. Uma responsabilidade que recairia, em última
instância, sobre o Estado brasileiro.
Essas
organizações denunciavam: o que acontecia em São Luís seria uma prova de que o
Brasil descumpria compromissos internacionais na área de direitos da infância e
da juventude. Algo grave, que deveria ser tratado em foro adequado: a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, um órgão autônomo da Organização dos
Estados Americanos.
O
Centro de Defesa Padre Marcos Passerini e o Centro de Justiça Global reuniram
três casos de emasculação e assassinato ocorridos nos anos 1990 e que não
haviam tido solução. Juntaram evidências de que os crimes poderiam ter ligação
e, além disso, de que as autoridades da época não se aprofundaram nas investigações.
Diante disso, apresentaram uma denúncia na comissão responsabilizando o Estado
pela não apuração das mortes.
“A
Comissão Interamericana entendeu que era um caso de grave violação de direitos
humanos, atingindo crianças e adolescentes do Maranhão e então ela deu início
ao trâmite de uma ação contenciosa contra o Brasil”, conta Sandra Carvalho,
coordenadora geral da Justiça global.
Foi
uma iniciativa emblemática. Do dia para a noite, não eram “apenas” mulheres
pobres pedindo ajuda na porta de delegacias para que a polícia elucidasse a
morte de seus filhos.
Havia uma organização internacional
pressionando para que encontrassem uma resposta. E os crimes ganharam
repercussão na imprensa do Brasil e do exterior. “Como esse tipo de crime
atingia garotos de periferia, muitos deles negros, não houve um interesse por
parte do Estado em realizar uma investigação adequada. Somente depois do envio
do caso ao sistema interamericano, é que uma força tarefa, com a participação
da Polícia Federal, foi designada”, lembra Sandra.
Só que mesmo com esse impulso, as
mortes continuariam por pelo menos dois anos até o assassino ser encontrado.
Um mecânico de bicicletas que vivia em uma casa de chão batido e enganou a
polícia do Maranhão por mais de uma década.
Francisco das Chagas Rodrigues de Brito nasceu
em Caxias, no Maranhão, em 1964, em uma família pobre. Na infância, foi levado
pela avó junto com quatro irmãos para viver na cidade de Altamira, no Pará. Lá,
estudou até o quarto ano do Ensino Fundamental e trabalhava desde a infância.
Vendia bolos e bananas para ajudar a família.
Entre 1991 e 1994
viveu entre Altamira e a cidade de São Luís. Foi na capital maranhense que ele
se casou. Teve duas filhas. Em 1998, se separou.
Chagas
teve diversas profissões, viveu de bicos e, quando finalmente foi preso em
dezembro de 2003, era mecânico de bicicletas. Nessa época, morava sozinho em um
casebre no bairro Jardim Tropical I, em São José de Ribamar, região
metropolitana de São Luís.
Era conhecido como
um homem solitário e pobre. Mas tinha a fama de bom vizinho. O delegado do caso
conta que os moradores do bairro se revoltaram quando Chagas foi preso. “Quando
fomos lá fazer a prisão dele, o pessoal dizia: ‘Isso é um absurdo, o Chagas é
gente boa, homem bom’. A população quis me linchar. Tive que pegar a arma e
atirar para cima para o pessoal se afastar e fui embora”, conta Sebastião
Uchoa.
Logo
descobriu-se que o aparentemente pacato Chagas era um homem astuto. “Chagas é
inteligentíssimo. Ele responde as coisas para você e, se você deixar, você é
induzido por ele”, relembra o delegado.
Márcio
Thadeu Silva Marques é um dos promotores de justiça que participaram do caso.
Ele diz que se surpreendeu com a frieza do assassino. “Uma premeditação, uma
frieza moral enorme e uma não-empatia absoluta com a situação das vítimas. A
maioria dos casos era de meninos que eram seus vizinhos de bairro, ou seja, ele
conhecia as famílias, conhecia as rotinas e se aproveitava desse conhecimento
para fazer com que esses crimes pudessem ficar não desvendados durante muito
tempo ”, diz.
Francisco
das Chagas fazia questão de parecer alguém preocupado com os sumiços de
crianças no bairro onde vivia. Se prontificava, por exemplo, a participar das
buscas pelos meninos desaparecidos. Antônio Batista dos Santos é pai de
Hermógenes, uma das vítimas. Ele conta que o assassino foi até a casa dele.
“Ninguém desconfiava daquele homem. Ninguém! Ele chegava na minha casa, tomava
café na minha casa depois que matou o meu filho. Ele [me] convidava: ‘Vamos
procurar o teu filho’.”
Com
o crescimento da repercussão dos casos e após a denúncia na Corte
Interamericana, que rendeu uma força tarefa policial, Chagas foi se tornando
mais empenhado em manter seu disfarce de bom vizinho. O esforço era tanto que o
mecânico tinha uma proximidade assombrosa com as investigações.
“Ele
montava equipes de homens para procurar o garoto no mato – e o garoto enterrado
dentro da casa dele. Ele participou da reprodução como figurante, representando
o pai da vítima na cena do crime”, conta Wilton Carlos Ribeiro, que trabalhou
como perito no caso.
A
sorte de Chagas começa a mudar no dia 6 de dezembro de 2003, quando ele
convence o garoto Jonnathan Silva Viera a ir com ele buscar juçara no meio do
mato. Antes de seguir com Chagas e desaparecer, o garoto avisou a irmã com quem
iria.
Seis dias depois,
Chagas estava preso, suspeito pelo sumiço do garoto. Mas ainda não havia
confirmação da morte. Uma ossada foi encontrada em 16 de janeiro de 2004 e um
exame de DNA comprovou que os restos mortais eram de Jonnathan.
No
local, Wilton encontrou uma camiseta amarela cortada. Ele se lembrou que havia
visto uma peça semelhante, cortada do mesmo jeito, em uma cena de crime no ano
2000. Wilton pesquisou nos arquivos e achou mais um caso com os mesmos
elementos em 2002. Não era coincidência e sim a conexão entre três crimes que
pareciam não ter relação entre si. Em comum, Francisco das Chagas
Um outro
levantamento feito por Wilton foi fundamental para a elucidação do caso. Ele
começou a registrar com um GPS os locais dos assassinatos dos meninos. No
início dos anos 2000, essa prática não era usual. Em pouco tempo, Wilton
conseguiu um mapa preciso dos crimes.
A
morte de Jonnathan claramente não era a primeira de Chagas. O levantamento
feito por GPS pelo perito mostrava que os corpos apareciam sempre perto da
residência e do trabalho do mecânico.
Em
março de 2004, finalmente a polícia vasculha a casa de Chagas. O resultado é
assustador: são achados pedaços de pele e cartilagem humanas no chão de terra
batida. Em um canto da casa, o solo parecia ter sido revirado. A polícia decide
fazer uma escavação.
“Quando
começamos a escavar, encontramos um corpo que estava seccionado em duas partes:
as pernas amarradas com arame. Tela de arame. E a outra parte, cabeça e
tronco”, relembra Wilton. “Era uma vítima que nós não tínhamos conhecimento de
que estava desaparecida. Se chamava Emanuel Diego”.
No mesmo dia, mais
um corpo foi achado. Era o de Daniel, filho de Mônica Aparecida Ferreira.
Chagas teve um relacionamento com a cunhada dela. “O Chagas eu conhecia porque
ele frequentava muito a minha casa. Todos os dias ele ia na minha casa. E aí,
às vezes, ele almoçava conosco. Almoçava, tomava café e ficava por lá.
Conversava e depois ia embora”, revela Mônica. A proximidade com a vítima pode
ter feito Chagas matar o garoto de apenas 4 anos, sua única vítima fora da
faixa entre 8 e 15 anos.
Com
a revelação de dois corpos em sua residência, Chagas não tinha mais como negar
os crimes. E decidiu assumir não apenas esses, mas outros assassinatos. Contou
à polícia que matou pelo menos 28 meninos em São Luís entre 1991 e 2003.
Indicou onde estavam alguns corpos ainda não encontrados. Mas não apontou onde
estavam outros e muitas mães nunca puderam localizar os filhos. Em um
depoimento gravado por policias em vídeo, revelou detalhes das mortes.
O assassino foi
submetido a exames psicológicos. Para Carlos Leal, psicólogo responsável por
emitir um laudo sobre Chagas, ele é um psicopata. “A consciência moral dessa
pessoa é muito prejudicada. O outro com a sua história, o outro com a sua vida,
o outro com a sua necessidade de existir... Ele some. O que importa é o que eu
quero viver, o prazer que eu quero ter”, explica o psicólogo.
A
fixação por garotos ficou evidente nas conversas e sua “assinatura” nos crimes
foi alvo de uma investigação mais minuciosa. Muito da mente de Chagas foi
revelado, mas outras coisas permanecem um mistério até hoje. Por que ele
cortava as camisetas das crianças? Ele abusava sexualmente das vítimas?
Francisco das Chagas foi condenado pelo
assassinato e emasculação de 28 meninos a 580 anos e 10 meses de prisão. Ele
cumpre a sentença na penitenciária regional de São Luís. Pelo menos dois
assassinatos que poderiam ser atribuídos a Chagas não entraram nessa conta, já
que ninguém deu queixa dessas crianças e não se sabe quem elas são.
A prisão do
matador encerrou um ciclo de violência e dor para muitas famílias. Também
ajudou o Brasil a se livrar de uma punição na Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Só que não pôs fim às polêmicas.
Altamira,
no Pará, foi a casa de Chagas na infância e alguns períodos nos anos 1990. Lá
também foram registrados casos de meninos mortos e emasculados, só que a
justiça paraense entendeu que os assassinatos faziam parte de rituais, que
seriam cometidos por integrantes de uma seita. As condenações aconteceram meses
antes de Chagas ser preso no Maranhão. Em depoimento à polícia, ele também
confessou crimes na região de Altamira. Seriam, portanto, no total, 42 vítimas
nos dois estados.
Para
a Justiça, os crimes de Altamira não estão na conta de Chagas. Até hoje duas
pessoas estão presas pelo assassinato de seis meninos e a emasculação de dois.
Um condenado já morreu na prisão e outro está foragido. Seriam todos, de acordo
com a sentença, membros da tal seita.
As mães
Para elas, a dor de perder o filho é
uma lembrança diária. Uma mutilação para toda a vida. “Eu digo que hoje eu vivo
só metade de mim” diz Mônica Regina Ferreira, mãe de Daniel, a vítima mais
jovem de Francisco das Chagas.
Muitas mães não tiveram sequer a
chance de enterrar os filhos. Grande parte passou anos sem ter uma resposta das
autoridades sobre o que tinha acontecido. “Nós íamos para a delegacia fazer um
B.O. dos nossos filhos, eles não acreditavam. Eles falavam na delegacia que
nossos filhos estavam por aí, usando droga”, revela Mônica.
São 28 mães. Vinte e oito maneiras de
lidar com o luto e uma perda para a qual ninguém está preparado. O sentimento
de revolta é presente. A indignação, também.
Em dezembro 2005, a ação contra o
Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi encerrada de forma
amistosa. Isso só aconteceu porque o país reconheceu responsabilidade nos casos
e estabeleceu uma série de compromissos. As medidas que o Brasil se comprometeu
a cumprir eram várias: a punição de Chagas, indenizações aos familiares e as
chamadas medidas de não repetição, como o treinamento de policiais e programas
de combate à violência sexual contra crianças e adolescentes.
Para que o acordo fosse celebrado, o
governo do Maranhão na época teve que registrar que “reconhece a insuficiência
de resultados positivos de anteriores linhas de investigação em comparação com
o atual estado de apuração, admitindo equívocos e dificuldades na necessária
solução imediata dos casos”, conforme consta no acordo de solução amistosa.
Na prática, as mães passaram a
receber uma pensão mensal, que hoje se tornou vitalícia, de um salário mínimo.
E ganharam uma nova casa do governo estadual. Todas no mesmo bairro. O local
ganhou o nome de Vila das Mães.
Hoje, das 28 mães contempladas com
casas, menos de 10 vivem no local. A convivência com outras mães que perderam
os filhos em circunstâncias semelhantes trazia conforto, mas para muitas
reforçava o trauma. “Quando a gente olha uma para outra, a gente sabe por
que estamos morando no mesmo local”, conta Rita de Cássia, mãe de Jonnathan,
morto por Francisco das Chagas aos 15 anos de idade.
Ela lembra que, desde que o imóvel
foi entregue, havia problemas. “Tu olhava por fora a estrutura, tu achava que
era boa, mas era péssima”, relembra. Rita diz que a má condição dos imóveis
também pode ser um motivo para muitas mães terem optado por deixar a Vila.
Hoje, ela reclama da presença de cupins e de problemas como goteiras e
vazamentos.
Rita conta que ainda sofre
preconceito dos vizinhos. “Quando olham, dizem assim: ‘A senhora não é a mãe
dos meninos?’ É assim. Foi tachado. Tá carimbado”, desabafa.
Desafiando o estigma que carregam,
quatros mães de vítimas de Chagas aceitaram gravar em vídeo como se sentem
sobre o que viveram.
Maria dos Milagres
Maria é mãe de Bernardo, um menino de
13 anos que desapareceu em 1992. Ela nunca viu o corpo do filho. O garoto
vendia palmito para ajudar em casa e desapareceu perto de um açude. No começo,
a mãe chegou a pensar que o filho havia fugido, mas logo se convenceu de que
havia acontecido algo pior. Só viu o caso ser esclarecido 11 anos depois.
Ela diz que hoje sofre com problemas
de memória e que a imagem que tem do filho está se apagando. Maria não tem
nenhuma foto do garoto. “Lembro um pouco do cabelo, que era bem lourinho. O
rosto, assim, já apagou da memória. Tem muita coisa que a minha memória não tá
conseguindo mais”, conta.
Maria Idalba dos Santos
Maria Idalba tem 61 anos e é a mãe de
Hermógenes, um garoto de 11 anos que herdou o nome do avô. Ele foi morto por
Francisco das Chagas em setembro de 2000. O corpo foi encontrado dois meses
depois. Maria Idalba e o marido foram testemunhas da frieza de Chagas, visto
acendendo uma vela no local em que o corpo de outro garoto do mesmo bairro
havia sido achado. Os pais ainda ouviram do assassino que ele ajudaria nas
buscas.
A mãe conta que depois de um tempo
começou a desconfiar de Chagas e perguntou: “Tu não sabe de nadinha que tá
acontecendo, que os meninos ‘tá’ desaparecendo? Tu não tá envolvido nisso?”.
Teria, então, ouvido do assassino: “A senhora é louca, é louca”. Aos 61 anos,
ela tem apenas uma foto do filho, já bastante desbotada.
Mônica Regina Ferreira
Mônica tem 44 anos e é a mãe da
vítima mais jovem de Francisco das Chagas. Daniel, de apenas 4 anos, foi tirado
da cama pelo assassino quando dormia. “Você imagina você ter seu filho
arrancado... O seu filho morto por alguém que deveria cuidar, por alguém que
ele chamava de tio”, desabafa.
Ainda na gravidez ela conta que
estranhava alguns comportamentos de Chagas. “Ficava admirando a minha barriga
de uma forma estranha. E eu senti aquilo”, lembra ela.
Meses antes do crime, Mônica diz que
viveu um episódio que a deixou desconfiada. “Uma vez, eu estava na minha
cozinha e a minha criança estava brincando na área [de serviço]. E eu ouvi um
grito da criança. E quando eu saí para olhar, quem estava perto era ele.”
Rita de Cássia da Silva
Rita de Cássia foi
a última mãe a perder um filho assassinado por Chagas. Por causa do crime
contra Jonnathan, que na época tinha 15 anos, o matador foi pego pela polícia.
“A minha vida agora é só tristeza. Não é mais nada”, diz Rita.
Sobre
a indenização paga para as mães das vítimas, ela diz: “Esse trocado não
preenche o vazio do meu filho. Eu não queria nada disso. Eu queria o meu
filho". Rita e 27 mães trocariam tudo para ter seus filhos de volta.
0 Comentários